segunda-feira, 7 de junho de 2010

Aborto e luta de classe: estratégia do capital

Por Jocsã Cruz

A “classe perigosa”, o lúpem-proletariado, essa massa que apodrece passivamente, repudiada pelas camadas mais baixas da antiga sociedade, pode, aqui e ali, ser arrastada para o movimento por uma revolução proletária. Suas condições de vida, contudo, preparam-na muito mais para o papel de uma ferramenta subordinada da intriga reacionária. (Manifesto Comunista)

De todas as classes que se põem frente a frente hoje com a burguesia, – diz o Manifesto – somente o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As outras declinam e, finalmente desaparecem ante à industria moderna.

No quadro da luta revolucionária o proletariado organizado divide a sociedade em classes opositoras. O principal inimigo da classe proletária é o capital. Na luta entre proletários e capitalistas outras duas classes intervêm, as médias e o lumpesinato. Eventualmente as classes médias e o lúpem-proletariado podem unir-se ao proletariado revolucionário, no entanto a tendência é que as classes médias, cada vez mais empobrecidas, passem a defender os interesses do proletariado, enquanto o lumpesinato torna-se uma ferramenta subordinada aos interessas do capital, e por conseguinte inimigo traiçoeiro do proletariado, posto que vivem essas duas classes lado a lado em meio a pobreza.

O lumpesinato é toda essa gente miserável que vive abaixo ou por fora das relações de mercado, ou relações sociais de produção. Não são os desempregados, pois esses vivem em função das relações de mercado, ora convocados para batalha, ora na reserva do grande exército produtivo. O lumpesinato está totalmente fora disso. Eles não aceitaram o estatuto de proletário, ou dele foram excluídos. São pedintes, mendigos, meninos de rua, malandros, marginais, ladrões, drogados, traficantes, bandidos, pistoleiros, presidiários. Enfim uma massa pleomorfa e insubordinada. Na sua posição de classe ambígua o lumpesinato é atacado por todos os lados, todos querem o seu fim. Mas ele resiste às predições dos sábios. Insiste em aumentar de número e se multiplicar. Pelo nascimento, ou pelo remanejamento de classe.

Quando o partido do proletariado reivindicava regulamentação dos trabalhos nas prisões Marx respondia pressentindo a animosidade entre proletariado e delinqüência:

Reivindicação mesquinha, num programa geral operário, em todo caso, deveria proclamar-se claramente que não se desejava, por temor à concorrência, ver delinqüentes comuns tratados como bestas, e, sobretudo, que não se queria privá-los de seu único meio de corrigir-se: o trabalho produtivo. Era o menos que se poderia esperar de socialistas.

Ainda assim ficava claro que o único meio de corrigir os delinqüentes era lhes fazendo aceitar o estatuto de proletário. E se não aceitassem?

Do mesmo jeito que o lumpesinato pode ser ponta de lança da luta revolucionária do proletariado, ele está à disposição da burguesia para infundir divisões no seio do povo. A existência dele é fundamental para justificarmos a existência da polícia bem equipada com armas de guerra e pronta para matar qualquer um que desobedeça as regras do viver decente e submisso na sociedade da grande produção. O lumpesinato anteriormente tinha sido a base para a constituição dos exércitos nacionais, para a colonização da América, para a jagunçada que servia aos coronéis, para os fura-greve:

Uma das contradições é a que existe entre a plebe não proletarizada e os proletários. Uma das contradições importantes – diz Foucault –, na qual a burguesia viu durante muito tempo, e sobretudo depois da Revolução Francesa, um dos seus meios de proteção; para ela o perigo maior contra o qual devia prevenir−se, o que ela tinha a todo o custo que evitar, era a sedição, era o povo armado, eram os operários na rua e a rua investindo contra o poder. E ela pensava reconhecer na plebe não proletarizada, nos plebeus que recusavam o estatuto de proletários ou nos que estavam excluídos dele, a ponta de lança do motim popular. Ela criou determinados procedimentos para separar a plebe proletarizada da plebe não proletarizada. E hoje esses meios lhe fazem falta − lhe foram ou lhe são retirados. Estes três meios são, ou eram, o exército, a colonização, a prisão. O exército, com o seu sistema de recrutamento, assegurava a extração sobretudo da população camponesa que superpovoava o campo e que não encontrava trabalho na cidade; e era este exército que se lançava, se fosse preciso, sobre os operários. A burguesia procurou manter uma oposição entre o exército e o proletariado, que muitas vezes funcionou que às vezes não funcionou, quando os soldados recusavam-se a marchar ou a atirar.* (Grifo nosso)

Mas hoje a colonização já não é possível na sua forma direta – continua Foucault. O exército já não pode desempenhar o mesmo papel que outrora. Por conseguinte, reforço da polícia, "sobrecarga" do sistema penitenciário, que deve por si só preencher todas estas funções. O esquadrinhamento policial quotidiano, os comissariados de polícia, os tribunais, as prisões, a vigilância pós−penal, devem desempenhar, no próprio local, um dos papéis que outrora o exército e a colonização desempenhavam, transferindo e expatriando indivíduos.*

O modelo policial hipertrofiado entra em crise e dá sinais de falência na atualidade, cada vez mais casos de abusos e de corrupção envolvendo a corporação. A força destruidora e insubordinada do lumpesinato cresce a cada crise; a cada remanejamento geral das forças produtivas cresce o número do lumpesinato. O lumpesinato é inimigo da burguesia e também do proletariado, principalmente do proletariado organizado e bem adaptado ao regime de produção capitalista, aquele proletariado sindicalizado e servil aos partidos de esquerda ou centro-esquerda.

No desenrolar do século XX vimos a marginalidade crescer exponencialmente juntamente com a pobreza, no Brasil esse quadro é bem evidente. A estratégia do capital em relação ao lumpesinato, não funciona ou não serve tão bem como outrora. O proletariado sindicalizado já está bem convicto de seu estatuto de proletário e parece não nos oferecer perigo iminente de revolução, é o lumpesinato mesmo que pode ameaçar a estabilidade do sistema.

As classes médias importunadas pelos marginais. O povo quer mais punições. Com a instituição policial-prisional à soleira de seus limites, para onde então enviar tantos pobres violentos e “perigosos”?

Não queremos esses meninos nos sinais, pedimos o fim da mendicância, da marginalidade e pomos a culpa no tráfico de drogas. A luta da polícia com o banditismo faz vítimas inocentes e queremos uma solução. O proletariado organizado olha para o lumpesinato como um inimigo do passado e do presente. A burguesia e as classes médias olham para o lumpesinato como massa inútil, como problema a ser resolvido. Um das soluções arranjadas pela burguesia e apoiada em coro pelos partidos de esquerda: aborto. Vamos exterminar esses pobres inúteis e perigosos antes mesmo do nascimento.

O aborto, entre outros métodos de controle de natalidade, serve para aliviar a pressão sobre a instituição policial-prisional, a qual tem tido dificuldade em lidar com o crescente número e com a espetacular violência do banditismo. O capital apóia veladamente os partidos de esquerda não se opondo ao discurso de direitos da mulher. O capital faz a propaganda pró aborto, pró controle de natalidade, posto que estamos numa fase da acumulação de capital na qual não são mais necessários grandes contingentes de miseráveis, para o capital bastam os proletários e o exército de reserva já domesticados. Há ainda a possibilidade de um grupo de capitalistas criar uma verdadeira indústria do aborto. As clínicas, hospitais e planos de saúde ainda poderiam tirar uma boa nota prestando serviço às classes médias, esses eunucos modernos.

Hoje, os partidos de esquerda que defendem o aborto, defendem uma estratégia discursiva própria do capital a qual explica o crescimento da pobreza e da violência pelo número de filhos de mulheres pobres. Os partidos de esquerda fazem tudo para disfarçar o aborto como um direito de auto-afirmação da mulher sobre o seu corpo. Mas escondem que esse direito fere outro direito mais básico: o direito a vida. Sem direito a nascer o direito a vida é solapado. E pelo que luta o grande proletariado desde o princípio? Pela sobrevivência.

A burguesia soube bem colocar o lumpesinato contra o proletariado organizado:

Todos sabem – diz Foucault – que Napoleão III tomou o poder graças a um grupo constituído, ao menos em seu nível mais baixo, por delinqüentes de direito comum. E basta ver o medo e o ódio que os operários do século XIX sentiam em relação aos delinqüentes para compreender que estes eram utilizados contra eles nas lutas políticas e sociais, em missões de vigilância, de infiltração, para impedir ou furar greves.*

Novamente o capital opõe pobres contra pobres. A burguesia sai duplamente vitoriosa, disfarça a origem da pobreza no número de filhos enquanto extermina no substrato biológico, ainda incapaz de defesa e de tomada de consciência, o que poderia ser a ponta de lança de um movimento revolucionário libertador, ou, de forma mais realista, de um movimento que desestabilizasse o poder político-econômico do capital, pelo menos é assim que a burguesia encara o lumpesinato: como a “classe perigosa”.

Matar intra-útero é mais eficaz e não produz alarde, método silencioso. Instrumentalizar a medicina como meio de luta de classe, oferecer à mulher através do SUS legalmente e gratuitamente um modo de se livrar do marginalzinho dentro do corpo dela, antes que o concepto bandido, ainda sem formato humano, receba algum direito legal ou a piedade da opinião pública ou uma arma do tráfico de drogas.

O logro do Estado consiste em reduzir os gastos com os pobres, principalmente com os inúteis que nada produzem tendo se tornado eternamente dependentes dos programas de ajuda do governo, “onerando a máquina pública”, ademais o Estado é forçado a oferecer-lhes educação e saúde gratuitas.

Quanto ao objetivo do proletariado organizado consiste em se livrar da concorrência dos miseráveis fura-greve, como também dos pobres que não se submetam ao estatuto de proletário (aquele que trabalha em acordo com as regras da grande produção) não servindo como massa de manobra dos sindicatos, além de serem encarados como um perigo ao “cidadão de bem”. Mais uma vez a liderança de esquerda trai o grande proletariado. Como outrora os padres ensinavam abstinência de sexo, a liderança do proletariado apregoa abstinência de filhos: pedem que as mães proletárias matem seus próprio filhos. Enganam a massa em favor das relações de produção burguesas, exterminam os pobres em nome da segurança, opõem pobres contra miseráveis e cinicamente afirmam o aborto como direito da mulher.

Na luta de classes o aborto é arma do capital contra a massa não proletarizada, sendo ainda uma forma de acumulação. A estratégia do capital envolve a reificação do embrião. Faz parte do discurso pró-aborto desnaturalizar o embrião, coisifcá-lo, reificá-lo. Ele pretende nos fazer ver o embrião como um objeto, como mero punhado de células sem qualquer direito fundamental, o humano só se constituiria enquanto merecedor de direitos a partir de certo período do desenvolvimento intra-útero arbitrariamente fixado pelos sábios:

Sob as condições do pluralismo ideológico – afirma Habermas, não podemos atribuir ao embrião, “desde o início”, a proteção absoluta da vida, de que as pessoas enquanto portadores de direitos fundamentais desfrutam.**

Quando qualquer estudante do ensino médio sabe que o embrião dentro do corpo da mulher é um ser humano em desenvolvimento, aparecem os sábios para nos iludir e como num passe de mágica determinam o momento exato em que o espírito entra no corpo fazendo-o humano merecedor de direitos.

Reificado já o embrião é mais fácil dele fazer comércio. Discurso duplamente lucrativo, do lado político, controla-se a natalidade, do lado econômico, faz-se o mercado do aborto.

* Retirado de “Microfísica do Poder”

** Retirado de “O futuro da natureza humana”