quarta-feira, 30 de abril de 2008

Até Einstein era socialista!


Por que Socialismo?
Albert Einstein
Maio 1949

Primeira Edição: Monthly Review, nº 1, maio 1949.Origem da presente Transcrição: Monthly Review.Tradução: Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves para o Marxists Internet Archive, Janeiro 2007.HTML de: Fernando A. S. Araújo .Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

É aconselhável que alguém que não é um especialista em assuntos econômicos e sociais expresse suas opiniões acerca do tema do socialismo? Creio, por uma quantidade de razões, que sim.
Consideramos primeiramente a questão desde o ponto de vista do conhecimento científico. Poderia parecer que não há diferenças metodológicas essenciais entre a astronomia e a economia: os cientistas de ambos os campos tentam descobrir leis de aceitabilidade geral para um grupo circunscrito de fenômenos com o objetivo de fazer a interconexão destes fenômenos tão claro quanto for possível. Mas na realidade tais diferenças existem. O descobrimento de leis gerais em economia se complica pela circunstância de que os fenômenos econômicos observados são freqüentemente influenciados por muitos fatores que são muito difíceis de avaliar separadamente. Além disso, a experiência que se acumulou desde o princípio do chamado período civilizado da história humana tem sido — como é sabido — grandemente influenciada e limitada por causas cuja natureza não são de nenhum modo exclusivamente econômicas. Por exemplo, a maior parte dos Estados na história devem sua existência à conquista. Os povos conquistadores se estabeleceram, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Atribuíram-se o monopólio da posse da terra e designaram para o sacerdócio alguém de suas fileiras. Os sacerdotes, com o controle da educação, fizeram da divisão de classes da sociedade uma instituição permanente e criaram um sistema de valores mediante o qual dali em diante o povo foi, em grande medida inconscientemente, guiado em sua conduta social.
Mas a tradição histórica é, por assim dizer, de ontem; em nenhuma parte temos realmente superado o que Thorstein Veblen chamou de "a fase depredadora" do desenvolvimento humano. Os feitos econômicos observáveis pertencem a esta fase e suas leis não são aplicáveis a outras fases. [Primeiro] Dado que o propósito real do socialismo é superar e avançar além da fase depredadora do desenvolvimento humano, a ciência econômica em seu estado atual não pode deixar muita luz sobre a sociedade socialista do futuro.
Segundo, o socialismo está dirigido para um fim social-ético. A ciência, sem embargo, não pode criar fins nem, ao menos, induzí-los nos seres humanos. Mas os fins em si mesmos são concebidos por personalidades com elevados ideais éticos — estes propósitos não são rígidos senão vitais e vigorosos — são adotados e levados adiante por aqueles muitos seres humanos que — quase inconscientemente — determinam a lenta evolução da sociedade.
Por estas razões, deveríamos estar atentos a não sobrestimar a ciência e os métodos científicos quando se trata de problemas humanos, e não deveríamos assumir que os especialistas são os únicos que têm direito e expressar-se sobre as questões da organização da sociedade.
Inumeráveis vozes têm afirmado desde já algum tempo que a sociedade humana está passando por uma crise, que sua estabilidade está gravemente prejudicada. É característico desta situação que alguns indivíduos se sintam indiferentes, ou integrados, ou hostis ao grupo que pertencem, seja ele grande ou pequeno. Para ilustrar este ponto, deixem-me registrar aqui uma experiência pessoal. Recentemente discuti com um homem inteligente e bem disposto a ameaça de outra guerra, a que em minha opinião colocaria seriamente em perigo a existência da humanidade, e comentei que somente uma organização supranacional poderia proteger-nos daquele perigo. Depois, o homem, calmamente e friamente, me disse: "Por que você se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?"
Estou seguro que apenas um século atrás ninguém teria afirmado tão levianamente algo semelhante. É a declaração de um homem que se esforçou em vão para alcançar um equilíbrio interior e basicamente perdeu a esperança de alcançá-lo. É a expressão de uma solidão e isolamento de que muita gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Tem uma saída?
É fácil fazer estas perguntas, mas é difícil respondê-las com alguma segurança. Devo tratar, contudo, da melhor maneira que se pode, mesmo eu sendo consciente da ação de nossos sentimentos e esforços que podem ser contraditórios e obscuros e que não podem ser expressados em fórmulas fáceis e simples.
O homem é, ao mesmo tempo, um ser solitário e um ser social. Como ser solitário, busca proteger sua própria existência e aqueles que são mais próximos, para satisfazer seus desejos pessoais e desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, busca conquistar o reconhecimento e o afeto de seus semelhantes para compartilhar o seu prazer, confortá-los com sua solidariedade e melhorar suas condições de vida. Só a existência destes esforços, freqüentemente em conflito, podem dar conta do caráter especial do homem, e sua combinação específica determina até que ponto um indivíduo pode alcançar o equilíbrio interior e contribuir para o bem estar da sociedade. É bem possível que a força relativa destes dois impulsos diversos esteja, basicamente, fixada pela herança. Mas a personalidade que finalmente emerge está em grande medida formada pelo entorno em que o homem se encontra durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que cresce, pela tradição desta sociedade, e por sua valoração de diversos tipos de condutas. O conceito abstrato "sociedade" significa para o indivíduo a soma de suas relações, diretas e indiretas, desde os seus contemporâneos até as gerações anteriores. O individuo é capaz de pensar, sentir, atuar, e trabalhar por si mesmo, mas sua dependência da sociedade é tanta — em sua existência emocional e intelectual — que é impossível pensar nele, ou compreendê-lo, fora do marco da sociedade. É a "sociedade" quem lhe proporciona comida, roupas, ferramentas de trabalho, linguagem, as formas de pensamento, e a maior parte do conteúdo do pensamento; sua vida se faz possível graças ao trabalho e às conquistas dos muitos milhões, contemporâneos e antepassados, que estão escondidos detrás da pequena palavra "sociedade".
É evidente então que a dependência do indivíduo pela sociedade é um feito natural que não pode ser abolido — exatamente como no caso das formigas e das abelhas. Sem dúvida, enquanto todas as ações das formigas e das abelhas estão fixadas até o menor detalhe por instintos rígidos e hereditários, os capatazes sociais e as interrelações dos seres humanos são muito variáveis e suscetíveis à mudança. A memória, a capacidade de realizar novas combinações, o dom da comunicação oral têm feito possíveis desenvolvimentos nos seres humanos que não são ditados por necessidades biológicas. Estes desenvolvimentos se manifestam nas tradições, nas instituições e nas organizações; na literatura; nos avanços científicos e nos engenhos; nas obras de arte. Isto explica como ocorre que, em certo sentido, o homem possa influir sobre sua vida através de sua própria conduta e que neste processo o pensamento e os desejos conscientes são muito importantes.
O homem adquire ao nascer, por meio de herança, uma continuação biológica que é fixa e inalterável, que inclui os impulsos naturais que são característicos da espécie humana. Ademais, adquire durante sua vida uma constituição cultural que adota da sociedade por meio da comunicação e através de muitas outras formas. É esta constituição cultural que, com o passar do tempo, está sujeita às mudanças e que determina em grande medida a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna nos ensinou, usando o estudo das chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode apresentar grandes diferenças, dependendo dos padrões culturais prevalecentes e dos tipos de organização que predominam na sociedade. É nisto que podem fundar suas esperanças aqueles que se esforçam em melhorar as condições dos homens: os seres humanos não estão condenados, por sua constituição biológica, a aniquilarem-se uns aos outros, ou à mercê de um destino cruel e de castigos.
Se nos perguntamos como deveriam ser transformadas a estrutura da sociedade e a atitude do homem para fazer a vida tão satisfatória como possível, deveríamos estar conscientes de que somos incapazes de modificar certas condições. Como foi mencionado antes, a natureza biológica do homem não está, a todos efeitos práticos, sujeita à mudanças. Ademais, as condições criadas pelos desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos chegaram para ficar. Nos locais com população relativamente densa, com os produtos que são necessários para sua existência, uma profunda divisão do trabalho e um aparato altamente centralizado são absolutamente necessários. Os tempos – que em perspectivas parecem tão idílicos – em que homens ou grupos pequenos podiam ser completamente auto-suficientes se foram para sempre. É apenas um leve exagero dizer que a humanidade já constitui uma comunidade planetária de produção e consumo.
É alcançado agora o ponto aonde posso indicar brevemente o que para mim constitui a essência da crise de nosso tempo. Está relacionado com o individuo e sua relação com a sociedade. O indivíduo está mais consciente do que nunca de sua dependência da sociedade. Mas não sente esta dependência como um traço positivo, como um laço orgânico, como uma força protetora, mas uma ameaça a seus direitos naturais, ou a sua existência econômica. Por outro lado, sua posição na sociedade é tal que os impulsos egocêntricos de sua constituição são constantemente acentuados, enquanto que seus impulsos sociais, naturalmente mais débeis, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, em qualquer posição da sociedade, sofrem este deterioramento progressivo. Involuntários prisioneiros de seu próprio egocentrismo se sentem inseguros e privados do mais inocente e simples desfrute da vida. O homem só pode encontrar o sentido da vida, curta e perigosa como é, consagrando a sociedade.
A anarquia econômica da sociedade capitalista de hoje em dia é, em minha opinião, a verdadeira fonte dos males. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros se esforçam incessantemente em privar o outro dos frutos de seu trabalho coletivo — não pela força mas cumprindo inteiramente as regras legalmente estabelecidas. A este respeito é importante dar-se conta de que os meios de produção — isto é: toda a capacidade produtiva necessária para produzir bens de consumo assim como bens de capital adicionais — podem ser — e em sua maioria o são efetivamente — a propriedade privada de alguns indivíduos.
Para simplificar, na discussão que se segue chamarei "trabalhadores" os que participam na propriedade dos meios de produção, apesar de isto não corresponder ao uso corrente do termo. Usando os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que transformam-se em propriedade do capitalista. O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o que lhe pagam, ambos medidos em termos de valor real. Em quanto o contrato do trabalho é "livre", o que o trabalhador recebe está determinado não pelo valor real dos bens que produz mas por suas necessidades mais básicas e pela necessidade de força de trabalho por parte dos capitalistas em relação ao número de trabalhadores competindo por empregos. É importante entender que nem sequer na teoria o salário do trabalhador é determinado pelo valor do que produz.
O capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competência entre os capitalistas, e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho alentam a formação de unidades maiores de produção em detrimento das menores. O resultado destes desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado cujo enorme poder não pode ser controlado efetivamente nem sequer por uma sociedade política democraticamente organizada. Isto é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados pelos partidos políticos, em grande medida financiados ou de alguma maneira influenciados por capitalistas privados que, por todos efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A conseqüência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses dos grupos não privilegiados da população. Por outra parte, nas condições atuais os capitalistas privados controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa escrita, rádio, educação). É então extremamente difícil, e por certo impossível na maioria dos casos, que cada cidadão possa chegar às conclusões objetivas e fazer uso inteligente de seus direitos políticos.
A situação prevalecente em uma sociedade baseada na propriedade privada do capital está então caracterizada por dois princípios mestres: primeiro, os meios de produção são propriedade de indivíduos, e estes dispõem deles como melhor lhes parecer; segundo, o contrato de trabalho é livre. Supostamente, não existe sociedade capitalista pura, neste sentido. Em particular, deve-se assinalar que os trabalhadores, por meio de grandes e amargas lutas políticas, tem conseguido uma forma um tanto melhorada do "livre contrato de trabalho" para certas categorias de trabalhadores. Mas, tomada como um todo, a economia atual não difere muito do capitalismo "puro".
Esta mutilação dos indivíduos é o que considero o pior mal do capitalismo. Nosso sistema educativo como um todo sofre este mal. Uma atitude exageradamente competitiva se inculca no estudante, que é treinado para adorar o êxito da aquisição como uma preparação para sua futura carreira.
Estou convencido de que há somente uma forma de eliminar estes graves malefícios: através do estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional que seja orientado para fins sociais. Em tal economia, os meios de produção são propriedade da própria sociedade e utilizados de maneira planejada. Uma economia planejada, que ajuste a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho entre todos aptos a trabalhar e garantiria os meios de vida de todos, homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de promover suas próprias habilidades inatas, intentaria desenvolver em um sentido de responsabilidade por seu próximo, em lugar da glorificação do poder e do êxito em nossa sociedade atual.
Sem embargo, é preciso recordar que uma economia planificada não é todavia o socialismo. Uma economia planificada como tal pode ser acompanhada pela completa escravização do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sócio-políticos extremamente difíceis: "como é possível, considerando a muito abarcadora centralização do poder, conseguir que a burocracia não seja todo poderosa e arrogante? Como podem proteger os direitos do indivíduo e mediante ele assegurar um contrapeso democrático ao poder da burocracia?"
Ter claras as metas e problemas do socialismo é de grande importância nesta época de transição. Dado que, nas circunstâncias atuais, a discussão livre e sem travas destes problemas são um grande tabú, considero a fundação desta revista um importante serviço público.


Notas:
[N1] Este texto, originalmente intitulado "Why Socialism?", foi escrito por Einstein para o primeiro número (1949) da revista marxista estadunidense Monthly Review. O texto, em sua versão na língua inglesa, pode ser consultado pelo http://www.monthlyreview.org/598einst.htm. Também há uma versão em espanhol disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=24924. (Nota do Tradutor)
[N2] A revista marxista estadunidense "Monthly Review". http://www.marxists.org/portugues/einstein/1949/05/socialismo.htm

terça-feira, 29 de abril de 2008

A crença no mundo justo e a vitimização secundária

A teoria da crença no mundo justo foi concebida por Melvin Lerner (Lerner, 1980), tendo como ponto de partida sua experiência com doentes mentais. Enquanto psicólogo clínico, Lerner era professor numa faculdade de Medicina, reparou que os médicos culpabilizavam os doentes mentais pela situação em que se encontravam. Observou também que os alunos da faculdade tinham a mesma atitude em relação às pessoas pobres, ou seja, consideravam que as pessoas desfavorecidas eram responsáveis pela situação em que estavam. Estas reações de desvalorização e culpabilização da vítima inocente foram designados por Brickman et al. (1982) como "vitimização secundária".

Esses comportamentos em pessoas bem adaptadas, que aparentemente pareciam perversos, levou Lerner a buscar uma explicação para os mesmos no campo dos fenômenos normais. A resposta foi a formulação da "teoria da crença no mundo justo".

Grosso modo, a crença no mundo justo seria um mecanismo desenvolvido por todas as pessoas para embasarem sua confiança na realização de suas aspirações futuras. Durante a infância a criança vai perceber que pode abdicar de uma vantagem imediata em prol de um vantagem maior no futuro, assim, ela precisa acreditar que, em se esforçado, e fazendo por merecer, irá conquistar o benefício no futuro. É daí que se desenvolve a crença no mundo justo, a crença de que recebemos aquilo que merecemos, a crença de que somos nós mesmos os responsáveis pelo nosso futuro.

Toda crença traz dentro de si uma constelação de recursos racionais e irracionais para embasá-la, como experiências pessoais anteriores, e experiências históricas/culturais anteriores, etc. que são generalizadas para todas as situações. Toda injustiça é uma ameaça à crença no mundo justo, pois desmente, ou contradiz, o pressuposto de que recebemos só aquilo que merecemos. É relevante ressaltar que a crença no mundo justo é importante em termos de saúde mental e que todas as pessoas, em maior ou menor grau, cultivam (ainda que não percebam) a crença no mundo justo.

Para proteger a crença no mundo justo (e a própria saúde mental) ante situações de injustiça as pessoas desenvolvem dois tipos básicos de estratégia: (1) a racional (ou ativa), no sentido de ajudar a vítima ou punir o responsável pela injustiça, e (2) a irracional (ou passiva), que são os tipos de vitimização secundária. A vitimização secundária foi objeto de muitos estudos empíricos. Reconhece-se dois tipos básicos de vitimização secundária: a heterovitimização secundária, que é um fenômeno por parte de observadores exteriores ao sofrimento da vítima, e a autovitimização secundária, ou seja, das vítimas sobre elas mesmas.

Cabe definir melhor a vitimização secundária antes de dar prosseguimento. Em resumo, a vitimização secundária seria um segundo processo de vitimização de uma vítima inocente, que sofreria tanto pelas conseqüências da primeira vitimização (a injustiça, vitimização primária), como pelas conseqüências psicológicas e sociais da segunda vitimização (a vitimização secundária). A literatura se refere a quatro tipos de vitimização secundária: a minimização do sofrimento da vítima; a evitação da vítima; a desvalorização da vítima; e a culpabilização da vítima:

Minimização do sofrimento.
Diversos estudos mostram que em muitas situações de vitimização, os observadores exteriores minimizam o sofrimento da vítima, podendo mesmo chegar a negá-lo. Chapman, Hobfoll e Ritter (1997) revelaram num estudo que mulheres grávidas aumentam o estresse quando os cônjuges minimizam o sofrimento causado pela gravidez (uma caso em que não há de fato uma vitimização primária). Hallie (1971) relata o fato de muitos alemães contemporâneos do regime nazista negarem a existência de assassínio em massa. Sonne e Pope (1991) mostraram que terapeutas de vítimas de estupro negavam a ocorrência do abuso e minimizavam as conseqüências nefastas do acontecimento. Rosenberg (1994) evidenciou que muitas vezes os observadores minimizavam o sofrimento de crianças maltratadas.

Evitação da vítima. É o afastamento, o distanciamento, o observador procura fugir a vista da vítima. Meyerowitz, Williams e Gessner (1987) notaram que pacientes portadores de câncer muitas vezes se queixam do distanciamento dos amigos. Snyder, Kleck, Strenta e Mentzer (1979) observarm que pessoas tendem a evitar o contato com deficientes, Strack e Coyne (1983) mostram que as pessoas tendem a reagir negativamente a pessoas deprimidas e a evitá-las.

Desvalorização da vítima. Goffman (1963) refere que é comum as pessoas considerarem as deficiências físicas dos outros como indício de um defeito de caráter. Stephan e Holahan (1982) mostraram que observadores consideram que pessoas com profissões de estatuto menos elevado são menos merecedoras de sucesso do que as pessoas com profissões de estatuto mais elevado (uma caso em que não há de fato uma vitimização primária). Hallie (1971) e Bettelheim (1943) referem que muitos alemães consideravam que as pessoas mandadas para os campos de concentração eram membros de uma raça impura que merecia esse destino.

Culpabilização da vítima. Uma forma muito comum de vitimização secundária. A crença de que vítimas de estupro agiram de modo sedutor em relação ao estuprador (Borgida & Brekke, 1985), a culpabilização de mulheres maltratadas (Summers & Feldman, 1984). Relativamente à pobreza muitas pessoas explicam-na com base no comportamento dos indivíduos de classes menos favorecidas (Lerner & Goldberg, 1999).
Como vemos, a vitimização secundária se estende por uma gama de situações distintas, muitas delas ligadas ao cotidiano, por isso, se nos policiamos, nos pegamos cometendo algum(s) tipo(s) de vitimização secundária.

É importante entender que essas categorias não são rígidas e podem se sobrepor. Deve ser notado que mesmo em casos onde a vítima não é inocente, ou não se pode provar a inocência, ou mesmo onde não há deveras uma situação de vitimização primária, essas estratégias de vitimização secundária também podem ser postas em prática por observadores exteriores. Quase todas as situações de sofrimento não explicável pela lógica do merecimento (causa-efeito), ou em que o sofrimento é continuo ou permanente têm elevado potencial de evocar um processo de vitimização secundária.

Muito embora a vitimização secundária seja um processo normal de defesa da crença no mundo justo ante situações injustas, e por assim dizer, uma defesa da própria saúde mental dos observadores de situações de sofrimento, ela é um processo daninho à vítima, a ainda mais danoso no caso da autovitimização secundária: quando a vítima se culpabiliza e/ou se desvaloriza.
Podemos assim compreender por que razão muitas vítimas não querem que as considerem como tal, dada a vitimização secundária que esse reconhecimento acarreta (Montada 1994).
Witting (1996) realça a importância das organizações de ajuda às vitimas, Coates e Winston (1983) chamam a atenção para a importância dos grupos de auto-ajuda. Shaver (1992) propõe um programa para ajudar as vítimas a lidar com a culpabilização por parte das outras pessoas, bem como a autocupabilização, que também ocorre com freqüência.

As situações com maior potencial para evocar vitimização secundária apresentam uma ou mais destas características: situação de injustiça; sofrimento contínuo ao longo do tempo (ex.: o sofrimento dos negros durante séculos de escravidão, os negros são tidos como inferiores, covardes, incompetentes, etc.); sofrimento desproporcional à suposta causa ( ex.: um menino que pula o muro da casa vizinha e é dilacerado até a morte pelo cachorro, ocorre culpabilização dos pais ou do próprio menino), sofrimento de causa desconhecida ou inexplicável (ex.: explicações místicas ou religiosas, a vítima ou os pais são tidos como pecadores, o sofrimento é um castigo) impossibilidade de correção da injustiça sofrida pela vítima (ex.: crimes não solucionados, o observador minimiza o sofrimento da vítima).

A vitimização secundária também é uma forma de o observador minimizar seu próprio sofrimento ante a situação injusta na qual se encontra a vítima.

Alimento Político




Não me assusta a notícia que li na página dez do caderno 1 do jornal CINFORM, a 7 de abril: Médicos, dentistas, e servidores do Ipesaúde entram em greve.
Digo que não me assusta, pois já havia referido para meus colegas do curso de Medicina que no futuro próximo seriamos nós quem estariam fazendo as greves e por isso não deveríamos nos imaginar em posição privilegiada em relação aos outros trabalhadores. Fiz essa argumentação no meio de uma discussão sobre o capitalismo na comunidade da turma de Medicina no Orkut. Alguns de meus colegas insistiam em dizer que todos nós somos capitalistas, pois estamos vivendo num regime capitalista adaptados ao estilo de vida consumista e individualista. Me opus veementemente a essa argumentação. Nós não somos capitalistas. Nós, estudantes de Medicina, estudantes da UFS, trabalhadores da saúde, não somos capitalistas!
Vamos ao dicionário Houaiss. Capitalista: (1) indivíduo que possui capital e vive de sua renda, (2) sócio que é responsável pela parte financeira da organização de uma empresa, (3) quem é muito rico. Como se vê, não há referência alguma a "pessoa que vive no sistema capitalista". O capitalista, numa definição mais precisa, é o dono dos meios de produção, é o empregador, dono ou sócio de um estabelecimento comercial de alto porte, ou indústria, ou estabelecimento financeiro como um banco.
Em resumo: os estudantes de Medicina, e os médicos não são capitalistas! A maior prova é a greve dos médicos. Um capitalista não faz greve, ele não pode fazer greve, pois ele não é empregado de ninguém, se ele paralisa suas atividades o prejuízo imediato é apenas dele. E como sabemos, um empresário não gosta de ter seus lucros diminuídos.
Passada essa primeira etapa de definição dos termos do problema vamos à seguinte, ao problema em si.
Somos estudantes e trabalhadores. Vivemos no sistema capitalista, sobe os grilhões de sua ideologia individualista e consumista. Desorganizados não podemos nos proteger dos abusos dos capitalistas. É por isso que existem instituições de defesa do trabalhador, algumas independentes por definição, os sindicatos de trabalhadores; outras fundidas ao regime de governo, o sistema judiciário, por exemplo. É nesse contexto que se faz necessário a união dos trabalhadores em prol da garantia de seus direitos.
O problema é que a sindicalização se tornou um empecilho à união dos trabalhadores. Os sindicatos passaram a se preocupar somente com as dificuldades imediatas do grupo de trabalhadores o qual representa. Dessa forma cada sindicato faz sua reivindicação em separado, não há uma rede de informações e decisões interconectada com a finalidade de informar e coordenar ações conjuntas dos trabalhadores em prol de sues direitos conquistados e de suas reivindicações a conquistar. Ainda na página dez do caderno 1 do CINFORM havia a notícia de mais três categorias de servidores insatisfeitas com seus salários, duas já em greve, guardas municipais e carteiros. Mas não li nada que falasse em coordenação dessas categorias de trabalhadores.
É por isso que as greves não são coordenadas. Digo, não há greves gerais, as únicas que amedrontam os economistas e capitalistas. Nos voltemos para o caso dos médicos e trabalhadores da saúde. Reivindicam: equiparação salarial e um plano de carreira. A autoridade que pode avaliar e deferir estas reivindicações é o Governo do Estado, ou seja, Deda, aquele que diz que é "gente como agente". É uma reivindicação antiga, de 2006. E Deda, o Governo do Estado, enrolando, enrolando, e marca reunião, e não marca, e os médicos esperam e esperam. Perdem a paciência. Greve. Resultado: Deda, que não é gente como agente, que não visita regularmente o João Alves, que certamente se dirige aos melhores hospitais do Estado e do País, não será de modo algum prejudicado pela greve. E o povo, sempre o povo, paga o pato.
E como não bastasse temos uma pequenina epidemia de dengue que já infectou mais de mil pessoas no Estado e matou uma dezena. E Deda, que é "gente como agente", o que faz? E o prefeito Edvaldo Nogueira? E Lula?
Como vemos, todas as nossas insatisfações estão relacionadas com o poder público. Os sindicatos de servidores públicos, mais conscientes dos problemas de cada categoria, deveriam conscientizar cada eleitor, cada cidadão, de que os problemas na área de saúde, educação, lazer, transporte, alimentação, moradia, segurança, etc. têm uma causa comum: a corrupção de políticos e a omissão dos que se dizem "gente como agente", a sórdida e gananciosa parceria de dirigentes com os interesses privados dos capitalistas.
Uma greve isolada (sem um processo contínuo de campanha contra políticos omissos e corruptos, sem um processo continuo de autoconscientização e coordenação da classe trabalhadora, e de conscientização de eleitores e cidadãos) jamais logrará conquistar plenamente sua pauta de reivindicação.
Sou favorável às greves, são um mecanismo de pressão e de reivindicação, no entanto se se tornam um instrumento passivo, ou uma finalidade em si mesmas, elas são prejudiciais. Muito da opinião pública se faz pela imagem que o trabalhador passa no modo de proceder a greve, se a opinião pública não se faz solidária ao grevista, dificilmente o gestor público levará a sério o poder do sindicato. Deve ser revisto o papel das greves como instrumento efetivo de reivindicação.