terça-feira, 29 de abril de 2008

A crença no mundo justo e a vitimização secundária

A teoria da crença no mundo justo foi concebida por Melvin Lerner (Lerner, 1980), tendo como ponto de partida sua experiência com doentes mentais. Enquanto psicólogo clínico, Lerner era professor numa faculdade de Medicina, reparou que os médicos culpabilizavam os doentes mentais pela situação em que se encontravam. Observou também que os alunos da faculdade tinham a mesma atitude em relação às pessoas pobres, ou seja, consideravam que as pessoas desfavorecidas eram responsáveis pela situação em que estavam. Estas reações de desvalorização e culpabilização da vítima inocente foram designados por Brickman et al. (1982) como "vitimização secundária".

Esses comportamentos em pessoas bem adaptadas, que aparentemente pareciam perversos, levou Lerner a buscar uma explicação para os mesmos no campo dos fenômenos normais. A resposta foi a formulação da "teoria da crença no mundo justo".

Grosso modo, a crença no mundo justo seria um mecanismo desenvolvido por todas as pessoas para embasarem sua confiança na realização de suas aspirações futuras. Durante a infância a criança vai perceber que pode abdicar de uma vantagem imediata em prol de um vantagem maior no futuro, assim, ela precisa acreditar que, em se esforçado, e fazendo por merecer, irá conquistar o benefício no futuro. É daí que se desenvolve a crença no mundo justo, a crença de que recebemos aquilo que merecemos, a crença de que somos nós mesmos os responsáveis pelo nosso futuro.

Toda crença traz dentro de si uma constelação de recursos racionais e irracionais para embasá-la, como experiências pessoais anteriores, e experiências históricas/culturais anteriores, etc. que são generalizadas para todas as situações. Toda injustiça é uma ameaça à crença no mundo justo, pois desmente, ou contradiz, o pressuposto de que recebemos só aquilo que merecemos. É relevante ressaltar que a crença no mundo justo é importante em termos de saúde mental e que todas as pessoas, em maior ou menor grau, cultivam (ainda que não percebam) a crença no mundo justo.

Para proteger a crença no mundo justo (e a própria saúde mental) ante situações de injustiça as pessoas desenvolvem dois tipos básicos de estratégia: (1) a racional (ou ativa), no sentido de ajudar a vítima ou punir o responsável pela injustiça, e (2) a irracional (ou passiva), que são os tipos de vitimização secundária. A vitimização secundária foi objeto de muitos estudos empíricos. Reconhece-se dois tipos básicos de vitimização secundária: a heterovitimização secundária, que é um fenômeno por parte de observadores exteriores ao sofrimento da vítima, e a autovitimização secundária, ou seja, das vítimas sobre elas mesmas.

Cabe definir melhor a vitimização secundária antes de dar prosseguimento. Em resumo, a vitimização secundária seria um segundo processo de vitimização de uma vítima inocente, que sofreria tanto pelas conseqüências da primeira vitimização (a injustiça, vitimização primária), como pelas conseqüências psicológicas e sociais da segunda vitimização (a vitimização secundária). A literatura se refere a quatro tipos de vitimização secundária: a minimização do sofrimento da vítima; a evitação da vítima; a desvalorização da vítima; e a culpabilização da vítima:

Minimização do sofrimento.
Diversos estudos mostram que em muitas situações de vitimização, os observadores exteriores minimizam o sofrimento da vítima, podendo mesmo chegar a negá-lo. Chapman, Hobfoll e Ritter (1997) revelaram num estudo que mulheres grávidas aumentam o estresse quando os cônjuges minimizam o sofrimento causado pela gravidez (uma caso em que não há de fato uma vitimização primária). Hallie (1971) relata o fato de muitos alemães contemporâneos do regime nazista negarem a existência de assassínio em massa. Sonne e Pope (1991) mostraram que terapeutas de vítimas de estupro negavam a ocorrência do abuso e minimizavam as conseqüências nefastas do acontecimento. Rosenberg (1994) evidenciou que muitas vezes os observadores minimizavam o sofrimento de crianças maltratadas.

Evitação da vítima. É o afastamento, o distanciamento, o observador procura fugir a vista da vítima. Meyerowitz, Williams e Gessner (1987) notaram que pacientes portadores de câncer muitas vezes se queixam do distanciamento dos amigos. Snyder, Kleck, Strenta e Mentzer (1979) observarm que pessoas tendem a evitar o contato com deficientes, Strack e Coyne (1983) mostram que as pessoas tendem a reagir negativamente a pessoas deprimidas e a evitá-las.

Desvalorização da vítima. Goffman (1963) refere que é comum as pessoas considerarem as deficiências físicas dos outros como indício de um defeito de caráter. Stephan e Holahan (1982) mostraram que observadores consideram que pessoas com profissões de estatuto menos elevado são menos merecedoras de sucesso do que as pessoas com profissões de estatuto mais elevado (uma caso em que não há de fato uma vitimização primária). Hallie (1971) e Bettelheim (1943) referem que muitos alemães consideravam que as pessoas mandadas para os campos de concentração eram membros de uma raça impura que merecia esse destino.

Culpabilização da vítima. Uma forma muito comum de vitimização secundária. A crença de que vítimas de estupro agiram de modo sedutor em relação ao estuprador (Borgida & Brekke, 1985), a culpabilização de mulheres maltratadas (Summers & Feldman, 1984). Relativamente à pobreza muitas pessoas explicam-na com base no comportamento dos indivíduos de classes menos favorecidas (Lerner & Goldberg, 1999).
Como vemos, a vitimização secundária se estende por uma gama de situações distintas, muitas delas ligadas ao cotidiano, por isso, se nos policiamos, nos pegamos cometendo algum(s) tipo(s) de vitimização secundária.

É importante entender que essas categorias não são rígidas e podem se sobrepor. Deve ser notado que mesmo em casos onde a vítima não é inocente, ou não se pode provar a inocência, ou mesmo onde não há deveras uma situação de vitimização primária, essas estratégias de vitimização secundária também podem ser postas em prática por observadores exteriores. Quase todas as situações de sofrimento não explicável pela lógica do merecimento (causa-efeito), ou em que o sofrimento é continuo ou permanente têm elevado potencial de evocar um processo de vitimização secundária.

Muito embora a vitimização secundária seja um processo normal de defesa da crença no mundo justo ante situações injustas, e por assim dizer, uma defesa da própria saúde mental dos observadores de situações de sofrimento, ela é um processo daninho à vítima, a ainda mais danoso no caso da autovitimização secundária: quando a vítima se culpabiliza e/ou se desvaloriza.
Podemos assim compreender por que razão muitas vítimas não querem que as considerem como tal, dada a vitimização secundária que esse reconhecimento acarreta (Montada 1994).
Witting (1996) realça a importância das organizações de ajuda às vitimas, Coates e Winston (1983) chamam a atenção para a importância dos grupos de auto-ajuda. Shaver (1992) propõe um programa para ajudar as vítimas a lidar com a culpabilização por parte das outras pessoas, bem como a autocupabilização, que também ocorre com freqüência.

As situações com maior potencial para evocar vitimização secundária apresentam uma ou mais destas características: situação de injustiça; sofrimento contínuo ao longo do tempo (ex.: o sofrimento dos negros durante séculos de escravidão, os negros são tidos como inferiores, covardes, incompetentes, etc.); sofrimento desproporcional à suposta causa ( ex.: um menino que pula o muro da casa vizinha e é dilacerado até a morte pelo cachorro, ocorre culpabilização dos pais ou do próprio menino), sofrimento de causa desconhecida ou inexplicável (ex.: explicações místicas ou religiosas, a vítima ou os pais são tidos como pecadores, o sofrimento é um castigo) impossibilidade de correção da injustiça sofrida pela vítima (ex.: crimes não solucionados, o observador minimiza o sofrimento da vítima).

A vitimização secundária também é uma forma de o observador minimizar seu próprio sofrimento ante a situação injusta na qual se encontra a vítima.

2 comentários:

Dr. Seward disse...

Essa postagem foi inspirada pelo livro:

CONCERTOS E DESCONCERTOS NA PROCURA DE UM MUNDO CONCERTADO de Isabel Falcão Correia

Diego Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.