segunda-feira, 2 de março de 2009

Gilberto Freyre e sua querela com Marx

Demos a palavra a Freyre
“Estamos em face de uma revolução de tal amplitude que ao lado dela a chamada Revolução Industrial se amesquinhará num brinquedo sociológico; e a outro brinquedo sociológico ficará reduzida a Revolução Social julgada definitiva pelo Marxismo ortodoxo; e que importava – na sua primeira fase – em uma generalizada ditadura do Proletariado, ou do Trabalho, ou dos seus agentes nem sempre fiéis, sobre as sociedades libertadas do capitalismo burguês.”

“Sabemos hoje que semelhante concepção de uma revolução mundial está de todo ultrapassada – solução já sem sentido”

“Caminhamos para um mundo socialmente novo, não há dúvida: mas não através de uma revolução social à moda Marxista e sim através de uma revolução total que tem dede já por causa a automatização. A automatização e a automação.”

“Pela automatização, o Homem se libertará tanto do que na civilização é burguesismo como do que nela pretende ser trabalhismo estritamente antiburguês no sentido da glorificação de um elemento da civilização – o trabalhador – que pelo fato de ser o trabalho humano o centro de toda civilização moderna, deveria ser considerado o senhor de seus antigos senhores”

“Isto pela simples razão de que, com a automatização, aquele proletariado tende a reduzir-se a um número insignificante”

“Dentro de uma civilização automatizada desaparecerá – segundo os melhores indícios sociológicos – o atual antagonismo capitalista trabalhador para se estabelecerem novas formas de relação entre os homens. E o problema central para esses homens, o maior desafio à sua inteligência, ao seu gênio, à sua ciência, à sua arte, à sua técnica, não será da organização do trabalho mas a da organização do lazer”

“A revolução pela automatização – para a qual caminhamos com rapidez tal que não só o chamado Comunismo Russo como o próprio Trabalhismo inglês já se estão tornando ‘ismos’ de museu sociológico”
(Trechos retirados do Prefácio à terceira edição de Sobrados e Mucambos, 1961)

Pontos básicos:
1) a “revolução pela automatização” é da grandeza da revolução industrial
2) é ultrapassada e inviável a “Revolução Social”
3) a automatização rebaixará o trabalho - e o trabalhador - do centro da organização da civilização
4) a automatização destruirá o “atual antagonismo capitalista-trabalhador para se estabelecerem novas formas de relação entre os homens”
5) a automatização reduzirá o número de trabalhadores a cifras insignificantes
6) a automatização libertará o homem da necessidade de trabalho
7) o lazer será a preocupação e a atividade principal da humanidade após a automatização

Demos a palavra a Marx:

Nesses recortes Marx fala da automação e do papel das máquinas no sistema de economia capitalista, se pode fazer paralelo com a opinião de Freyre, vejamos o contraste de opiniões, vejamos o enfoque diferente dos comentários:

“As máquinas propriamente ditas datam do final do século XVIII”. “A máquina é uma reunião de instrumentos de trabalho, e não uma combinação de trabalhos para o próprio operário”.
“Ferramentas simples, acumulação de ferramentas, ferramentas compostas, colocação em movimento de uma ferramenta composta por apenas um motor manual, pelo homem, colocação em movimento dessas ferramentas por forças naturais, máquina, sistemas de máquinas tendo um autônomo por motor – eis a marcha das máquinas”.

“À medida que a concentração dos instrumentos se expande, a divisão [do trabalho] expande-se também e vice versa”. “A invenção das máquinas acabou por separar a indústria manufatureira da indústria agrícola”. “Antes da invenção das máquinas, a indústria de um país trabalhava principalmente com matérias-primas que eram produtos de seu próprio solo. Graças à aplicação das máquinas e do vapor, a divisão do trabalho pôde assumir tais dimensões que a grande indústria, destacada do solo nacional, depende unicamente do mercado universal, das trocas internacionais, de uma divisão de trabalho internacional”

“A oficina automática marcou seu início por atos que nada tinham de filantrópicos. As crianças foram mantidas no trabalho a golpes de chicote: fazia-se delas objeto de tráfico”. “Enfim, desde 1825, quase todas as novas invenções resultaram das colisões entre o operário e o empresário que procurava a qualquer custo depreciar a especialização do operário. Após cada nova greve, mesmo pouco importante, surgia uma nova máquina”. “O operário (...) no século XVIII resistiu durante muito tempo ao império nascente da automação”.

“pela introdução das máquinas (...) a tarefa do operário dentro da oficina tornou-se mais simples, o capital agrupou-se , o homem foi mais despedaçado”.

“na oficina automática é que o trabalho perdeu todo o caráter de especialidade”. “A oficina automática apaga as espécies e o idiotismo do ofício”.

“Os economistas afirmam aos operários: não façam, mais coalizões. Fazendo-o, entravarão a marcha regular da indústria, impedirão os fabricantes de atender os pedidos, perturbarão o comércio e precipitarão a invasão das máquinas que, tomando o seu trabalho parcialmente inútil, lhes forçarão a aceitar um salário ainda mais baixo”.

“Apesar de uns e outros, apesar dos manuais e das utopias, as coalizões não deixaram um só instante de marchar e de crescer com o desenvolvimento e o crescimento da indústria moderna”. “A Inglaterra, onde a indústria atingiu o mais alto grau de desenvolvimento, possui as coalizões mais vastas e mais bem organizadas”. “A formação dessas greves, coalizões e trade-unions caminha simultaneamente com as lutas políticas dos operários”

(Trechos retirados de “Miséria da Filosofia”)

Pontos básicos da opinião de Marx

1) a automação não é fenômeno diverso da revolução industrial (como parece afirmar Freyre), mas um momento na evolução da revolução industrial o qual se inicia já no séc. XVIII
2) a automação não reduz os antagonismos de classe (como parece afirmar Freyre), ela é proveniente desses antagonismos e os acentua, ela é causa e efeito dos antagonismos das classes.
3) a automação é uma arma do capitalista contra o operário, pela automação se reduz o valor do trabalho ( de certa forma Freyre não discorda disso).
4) a automação não rebaixa o trabalho (o contrário do que afirma Freyre), ela o torna ainda mais mundial, ainda mais internacional, ainda mais universal, ela leva o trabalho a todos os cantos da terra.
5) a automação por si só não é suficiente para barrar o movimento de organização do operariado como classe (como crê Freyre e os “economistas”), nem pode barrar suas reivindicações de poder, no fundo ela contribui para a reunião dos trabalhadores em torno de interesse comum da classe, na medida em que “apaga as espécies e o idiotismo do ofício”. Nesse sentido a automação é revolucionária, no sentido de impulsionar a revolução social, e não de barrá-la (como parece apontar Freyre).

Uma explicação para a “ingenuidade” de Freyre:

Os pensadores clássicos do contrato social teorizaram a lei e o Estado como instâncias de superação das divisões internas da sociedade civil, eram otimistas na crença de que os interesses antagônicos das classes seriam unificados no Estado e na lei.

Para Marx essa saída não passa de ilusão, de falsa consciência, de ideologia. “Como se explica”, questiona Marx, “que vivemos em sociedades nas quais as desigualdades econômicas, sociais, culturais, e as injustiças políticas se ofereçam como não sendo desigualdades nem injustiças porque a lei e o estado de direito afirmam que todos são livre e iguais?”1, ele mesmo responde, “a sociedade capitalista, constituída pela divisão interna de classes e pela luta entre elas, requer para seu funcionamento a fim de recompor-se como sociedade, aparecer como indivisa”1.

Essa necessidade de a sociedade capitalista “aparecer como indivisa” – primeiramente teorizada pelos contratualistas na personificação do Estado e da lei como instâncias reconciliadoras das divisões internas da sociedade – reaparece agora em Freyre personificada na automatização. Ele aposta na automatização como forma de reconciliar o irreconciliável, não mais por meio do estado ou da lei, ou de outra instância transcendente, mas pelas maquinas, que substituindo o homem na produção, permitam finalmente a extinção do trabalhador e a emergência da burguesia, da classe dominante, das Casas-grandes e dos Sobrados agora livres do incômodo que é a classe trabalhadora e suas reivindicações de poder.

Essa reconciliação, na verdade, esconde algo mais profundo (e muito diferente da reconciliação almejada pelos contratualistas), é uma aposta no fim do proletariado, uma aposta na vitória final do Sobrado moderno – o arranha-céu – sobre o Mucambo – a favela. Vitória que se dá através da extinção física mesmo dos trabalhadores, que deixaram de ser indispensáveis, que deixaram de ser necessários, que merecem então perecer. Que vão inevitavelmente desaparecer.

Nesta aposta o fim da contradição se faz pela extinção da força mais fraca: o trabalhador.

É assim que explico essa “ingenuidade” de Freyre. Na verdade é uma aposta que expressa um desejo de classe, o desejo da Casa-grande, do Sobrado, o desejo dos arranha-céus de Brasília.

A aposta de Marx:

Por outro lado há a aposta de Marx no proletariado vitorioso, aposta que leva em conta a automatização como fator que iguala e encerra todos os trabalhadores num patamar comum, forçando-os a ver a necessidade de uma luta “universal”, uma luta de todos os trabalhadores. Nesse sentido a automação se torna condição de possibilidade para a revolução social. Uma aposta radicalmente contrária à de Freyre.

Minha aposta:

Tendo a fazer fé na aposta de Marx, pois vejo que muito ao contrário do que diz Freyre a automatização jamais reduziu o proletariado a pequenas cifras, ela jamais nos libertou da necessidade de trabalho e jamais destruiu o antagonismo capitalista-trabalhador. Sou menos otimista que Marx, se isso é uma aposta, há sempre possibilidade de derrotas, essa luta não está decidida de antemão. Mas em certo sentido era exatamente isso que Marx queria dizer: que a história é devir, que o futuro não é mera repetição do presente e que nada está decidido desde o princípio, não se pode prever com 100% de certeza.


1: retirado de “Direitos humanos e...” da Comissão Justiça e Paz, ed. Brasiliense,

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