segunda-feira, 2 de março de 2009

Marilena Chauí: o medo, o Estado, a declaração de direitos humanos, a propriedade, a luta de classes e o caminho histórico das democracias


“... o advento da sociedade moderna altera o sentido do medo, que se torna muito mais difuso do que antes e se manifesta como medo da violência dos indivíduos contra os indivíduos, medo do poder e medo do tempo. É nesse contexto que a teoria do direito natural nasce. Os autores clássicos afirmam que, por natureza, os homens são iguais e livres, mas ressalvam que, em estado de natureza, os homens não conseguem garantir seus direitos naturais; para garanti-los, recorrem ao contrato social, a partir do qual os homens decidem alienar seus direitos naturais a uma instância soberana. Essa instância é o Estado.”

“Isto significa, donde o otimismo desses pensadores, que a posição de um pólo político separado da sociedade, no qual esta possa superar suas divisões internas e perceber-se unificada, confere à legalidade o estatuto da legitimidade: a lei se anuncia como a visibilidade sócio-política da justiça.”

“Esse otimismo republicano que vigorará na Revolução Francesa e que sustenta a declaração dos direitos do homem e do cidadão, isto é, os direitos naturais e os direitos civis, é o que desaparecerá quando, no século XIX, os movimentos populares e proletários revelarem a injustiça das leis e a inexistência concreta dos direitos declarados.”

“Marx indaga: Como se dá a passagem da relação pessoal de dominação à dominação impessoal por meio do Estado e, portanto, da lei e do direito? E como se explica que vivemos em sociedades nas quais as desigualdades econômicas, sociais, culturais, e as injustiças políticas se ofereçam como não sendo desigualdades nem injustiças porque a lei e o estado de direito afirmam que todos são livre e iguais? Como explicar que o Estado funcione com aparato policial repressivo, cause medo, em vez de nos livrar do medo?”

“Uma das respostas de Marx às suas próprias perguntas é bastante conhecida: a sociedade capitalista, constituída pela divisão interna de classes e pela luta entre elas, requer para seu funcionamento a fim de recompor-se como sociedade, aparecer como indivisa. A indivisão se propõe de duas maneiras. Em primeiro lugar no interior da sociedade civil, pela afirmação de que há indivíduos e não classes sociais, o que nega a existência das divisões sociais, o ocultamento da divisão em classes se faz pelo Estado, oferecendo-se como pólo de universalidade, generalidade e comunidade imaginárias.”

“A resposta de Marx enfatiza que o estado de direito é uma abstração, pois a igualdade e a liberdade postuladas pela sociedade civil e promulgadas pelo Estado não existem. Nesse sentido os diretos do homem e do cidadão, além de serem ilusórios, estão a serviço da exploração e da dominação.”

“A verdade das colocações de Marx transparece quando examinamos tanto a declaração dos direitos de 1789 quanto a declaração dos direitos humanos de 1948, pois em ambas a propriedade privada é declarada um direito do homem e do cidadão. Em nossas sociedades, a lei e o Estado, que devem proteger a propriedade privada, porque esta é um direito do homem e do cidadão, só poderão defendê-la contra os sem-propriedade, a defesa do direito de alguns significa a coerção, a opressão, a repressão e a violência sobre os outros, no caso, sobre a maioria. E não será casual que o crime em nossa sociedade seja preferencial e primordialmente definido como crime contra a propriedade, uma vez que mesmo a vida é definida como propriedade privada da pessoa. Assim, somos forçados a reconhecer que as declarações modernas dos diretos humanos trazem consigo a violência e produzem medo.”

“Com efeito, para que a propriedade privada possa ser tida como um direito, é preciso que os outros direitos sejam também declarados para legitimá-la. É preciso, por exemplo, que os não proprietários sejam considerados também proprietários – do seu corpo, de sua pessoa e da força de trabalho – por outro lado, para que o mercado receba mão-de-obra qualificada é preciso assegurar o aprendizado, daí declarar-se que são todos seres racionais – e livres.”

“Observamos, assim, que cada direito, uma vez proclamado, abre campo para a declaração de novos direitos e que essa ampliação das declarações de direitos entra em contradição com a ordem estabelecida. Podemos dizer que as declarações de direitos afirmam mais do que a ordem estabelecida permite e afirmam menos do que os direitos exigem.”

“Essa contradição é a chave da democracia moderna, pois a classe dominante moderna, liberal ou conservadora, jamais foi nem pode ser democrática, e, se as democracias fizeram um caminho histórico, isto se deve justamente às lutas populares pelos direitos que, uma vez tendo sido declarados, precisam ser reconhecido e respeitados. A luta popular pelos direitos e pela criação de novos direitos tem sido a história da democracia moderna.”

(Trechos retirados de “Direitos humanos e...” da Comissão Justiça e Paz, ed. Brasiliense, p.20-26)

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